sábado, 19 de janeiro de 2013

Manoel por Manoel



Eu tenho um ermo enorme bem dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto. Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparementos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. Era o menino e as árvores.

                                                                     Manoel de Barros

3 comentários:

cirandeira disse...

Teu espaço é tão rico, Marcela!
Tua miscelânea faz-me sentir mais
inteira, mais esperançosa nesse mundo tão árido, tão vazio...

Obrigada por nos dar essa oportunidade.

beijoss

Marcela disse...

Oi, querida!
O que faço aqui é guardar em meu baú eletrônico recortes de tudo que me comove.
Mas a alegria é maior quando nossas emoções são partilhadas, não é?
Celebremos a poesia!
Obrigada por participar da minha festa.
bj grande.

Fátima Nascimento disse...

Manoel de Barros é um menino lindo, com quase 100 anos. Amo a obra dele!