segunda-feira, 25 de novembro de 2013

    
                       Preâmbulo às instruções para dar corda no relógio
Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com âncora de rubis; não dão de presente somente esse miúdo quebra-pedras que você atará ao pulso e levará a passear. Dão a você — eles não sabem, o terrível é que não sabem — dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo, que deve ser atado a seu corpo com sua correia como um bracinho desesperado pendurado a seu pulso. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrines das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.                            Julio Cortázar em: Histórias de Cronópios e de Famas

quinta-feira, 14 de novembro de 2013



Amor Feinho

 
Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado é igual fé,
não teologa mais.
...
Duro de forte o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.

Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.


                                                                               Amor feinho é bom
                                                                               porque não fica velho.

                                                                              Cuida do essencial; o que brilha

                                                                               nos olhos é o que é:
                                                                              eu sou homem você é mulher.
                                                                             Amor feinho não tem ilusão,
                                                                             o que ele tem é esperança:
                                                                             eu quero um amor feinho.
 
                                                                              Adélia Prado

terça-feira, 12 de novembro de 2013

                     Natureza humana                              

Cheguei. Sinto de novo a natureza
Longe do pandemônio da cidade
Aqui tudo tem mais felicidade
Tudo é cheio de santa singeleza

Vagueio pela múrmura leveza
Que deslumbra de verde e claridade
Mas nada. Resta vívida a saudade
Da cidade em bulício e febre acesa

Ante a perspectiva da partida
Sinto que me arranca algo da vida
Mas quero ir. E ponho-me a pensar

Que a vida é esta incerteza que em mim mora
A vontade tremenda de ir-me embora
E a tremenda vontade de ficar.
 
           Vinícius de Moraes

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Solidões

Eles têm razão
essa felicidade
pelo menos com maiúscula
                                           não existe
ah, mas se existisse com minúscula
seria semelhante à nossa breve
                                                pré-solidão

depois da alegria vem a solidão
depois da plenitude vem a solidão
depois do amor vem a solidão

já sei que é uma pobre deformação
mas o certo é que nesse durável minuto
a gente se sente
                        só no mundo

sem posses
sem pretextos
sem abraços
sem rancores
sem as coisas que unem ou separam
e nesta única maneira de estar só
a gente sequer tem piedade de si mesmo

os dados objetivos são como segue
há dez centímetros de silêncio
            entre tuas mãos e minhas mãos
uma fronteira de palavras não ditas
           entre teus lábios e meus lábios
e algo que brilha um pouco triste
           entre teus olhos e meus olhos

claro que a solidão não vem sozinha

se a gente olha por sobre o ombro seco
de nossas solidões
vê um longo e compacto impossível
um singelo respeito por terceiros ou quartos
esse percalço de ser boa gente

depois da alegria
depois da plenitude
depois do amor
                        vem a solidão

está certo
              mas
o que virá depois
da solidão

às vezes não me sinto
                                 tão só
se imagino
ou melhor se sei
que além da minha solidão
                                          e da tua
ainda estás aí
mesmo que se perguntando sozinha
o que virá depois
                           da solidão.

           Mario Benedetti em: "O Amor, as mulheres e a vida - Antologia de poemas de amor

domingo, 3 de novembro de 2013

Existe sempre o mar
sepultando pássaros
renovando soluços
rompendo gestos

Existe sempre uma partida
começando em ti
tomando forma
e sumindo contigo.

Existe sempre um amigo perdido
um encontro desfeito
e ameaços de pranto na retina.

Existe um canto de glória
iniciado nunca
mas guardado no meu peito
dissolvendo a memória.

E além da canção incontida
do teu amor ausente
além da irrevelada amargura
desta espera
existe sempre a terra
desfazendo
as vontades primeiras de Existir.

           Hilda Hilst em: Baladas