terça-feira, 30 de agosto de 2011

Elisa Lucinda

A Estrada

A porta parece com a dona:
só abre por dentro,
não é preciso bater,
só batucar com sentimento.

Uma mulher, meu amigo...
o que é uma mulher, meu amigo?
Senão uma casa, um lar,
senão uma estrada a raiar?
Então a mulher é mais que uma porta de entrar,
 e é você quem a abrirá.

                                                                          Elisa Lucinda em: A Fúria da Beleza

domingo, 28 de agosto de 2011

Adélia Prado

Para Comer Depois

Na minha cidade, nos domingos de tarde,
as pessoas se põem na sombra com faca e laranjas.
Tomam a fresca e riem do rapaz de bicicleta,
a campainha desatada, o aro enfeitado de laranjas:
"Eh bobagem! "
Daqui a muito progresso tecno-ilógico,
quando for impossível detectar o domingo
pelo sumo das laranjas no ar e bicicletas,
em meu país de memória e sentimento,
basta fechar os olhos:
é domingo, é domingo, é domingo.

                      Adélia Prado

sábado, 27 de agosto de 2011

Entrevista com Eduardo Galeano

"Somos muitíssimos mais do que nos dizem que somos" - Eduardo Galeano

Vi  há pouco tempo esta entrevista na TV Cultura, no programa Sangue Latino. Foi uma emoção incontida: chorei, comovida, saciada de poesia! O vídeo inteiro tem 24min e vale cada segundo. Eduardo Galeano também figura no rol das minhas paixões. Nesta entrevista primorosa ele fala sobre a vida, as coisas pequenas, as grandes, os encontros e desencontros, amizade, as perdas, América Latina, Uruguai, seu cachorro e várias coisas mais e ainda recita poemas.  

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Memórias da Emília

" Antes de pingar o ponto final quero que saibam que é uma grande mentira o que anda escrito a respeito do meu coração. Dizem todos que não tenho coração. É falso. Tenho, sim, um lindo coração - só que não é de banana. Coisinhas à-toa não o impressionam, mas ele dói quando vê uma injustiça. Dói tanto, que estou convencida de que o maior mal deste mundo é a injustiça."

               Monteiro Lobato em: Memórias da Emília

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Clarice

" Se uma pessoa perfeita do planeta Marte descesse e soubesse que as pessoas da Terra se cansavam e envelheciam, teria apenas pena e espanto. Sem entender jamais o que havia de bom em ser gente, em sentir-se cansada, em diariamente falir; só os iniciados compreenderiam essa nuance de vício e esse refinamento de vida."

                                               Clarice Lispector in: Laços de Família

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Entrevista


Telefonam-me do jornal:
-Fale de amor-
diz o repórter,
como se falasse
do assunto mais banal.
-Do amor? -Me rio
informal. Mas
ele insiste:
-Fale-me de amor-
sem saber, displicente,
que essa palavra
é vendaval.

-Falar de amor?-Pondero:
o que está querendo, afinal?
Quer me expor
no circo da paixão
como treinado animal?

-Fala...-insiste o outro
-Qualquer coisa.
Como se o amor fosse
“qualquer coisa”
prá se embrulhar no jornal.

-Fale bem, fale mal,
uma coisa rapidinha
-ele insiste,como se ignorasse
que as feridas de amor
não se lavam com água e sal.

Ele perguntando
eu resistindo,
porque em matéria de amor
e de entrevista
qualquer palavra mal dita
é fatal.
          Afonso Romano de Sant'anna

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Samba X Funk

    " É dentro da unidade da nossa diversidade que habita o coraçao do povo que somos."
                                             Antônio Nóbrega



Conversas boas sáo festas na alma. Existem pessoas com as quais as conversas nao se encerram na mesa do bar. Despedimos, cada um para sua casa, e o papo segue dentro da gente, perturbador.
Este é um dos assuntos que me acompanhou à casa, dormiu comigo e agora, desavergonhadamente, continua aqui..
Entre um chopp e outro, muito mais assunto, do prosaico à psicanálise. Tudo dá samba! Samba bom, harmonioso, vibrante, como tem que ser, como foi o nosso papo...mas se o funk é lembrado e surge atropelando meu samba, aí sou incisiva.
Este blog nao se propõe a falar mal de ninguém, ou de nada, ele quer somente exaltar a nossa arte. Mas quando o mal gosto, expressáo muito usada por Ariano Suassuna, ameaça a beleza da cultura popular, essencialmente brasileira, eu me ponho a bradar.
Os artistas populares povoam meu imaginário pessoal, andam comigo, vivem comigo, ora me desordenam, ora me rearrumam. Mas também sáo parte de uma memória maior, a memória coletiva nacional. Carregam consigo a memória da trajetória de um povo e, por isso, sua arte é o espelho de uma naçao.
E por falar em Ariano Suassuna, é bom lembrar que ele é também um militante da cultura popular. O sertanejo pula das páginas de seus livros e se apresenta muito além do sotaque de novela das oito. É o Brasil real, como ele diz, que se mostra: mitológico, rico, sofrido e criativo. Já ganhou a pecha de arcaico, mas nao liga. Segue palestrando por este país, levantando e defendendo a bandeira da cultura popular, seja na música, na língua (também ameaçada com exagero de estrangerismo), na literatura, sempre com unhas, dentes e verbo.
Ameaçado também está o samba, expressáo mais emblemática de um povo vibrante e alegre. Os tambores, que resistem há mais de duzentos anos, estáo sendo calados pela batida do funk; nossos tamborins estáo esfriando ante ao apelo sedutor da cultura de massa, pasteurizadora e vulgarizadora da arte. Sem entrar na seara sociológica da questáo, o fato é que é um fenönemo muito intenso nos suburbios e morros do Rio de Janeiro, o nascedouro do samba, que nos deu tantos talentos. O samba desceu o morro e passou a ser reduto da classe média; já nossos jovens das comunidades estáo cada vez mais seduzidos pela batida pobre do funk.
Triste constatação. Um povo só constitui como tal quando se identifica culturalmente. A uniformizaçao destrói a diversidade - nosso bem mais precioso. Por isso, o funk é, ao meu ver, nefasto.
A cultura de um povo está instrinsecamente ligada à sua autoestima. Quanto isto é perdido, o que sobra é uma sociedade amorfa e sem identidade. Perde-se a noçao de pertencimento. A alegria e a criatividade, táo características do nosso povo, dão lugar a uma imitaçao barata do que há pior na cultura estadunidense.
A arte é também instrumento para formar cidadaos críticos. A nossa cultura popular precisa de militäncia, como faz Ariano Suassuna, para nao sucumbir ante ao processo em curso de sua descaracterização.


Êta que esse chopp rendeu...

O Silêncio

               Uma longa mesa de amigos, na churrascaria Plataforma, era o refúgio de Tom Jobim contra o sol do meio-dia e o tumulto das ruas do Rio de Janeiro.
               Aquele meio-dia, Tom sentou-se em mesa separada. Num canto, ficou tomando chope com Zé Fernando Balbi. Compartilhava com ele o chapéu de palha, que usavam em turnos, um dia um, no dia seguinte o outro, e também compartilhavam outras coisas:
               - Não - disse Tom, quando alguém chegou perto. - Estou numa conversa muito importante.
               E quando outro amigo se aproximou:
               - Você me desculpe, mas nós temos muito para falar.
              E a outro:
               - Perdão, mas nós dois estamos discutindo um assunto sério.
              Nesse canto separado, Tom e Zé Fernando não se disseram uma única palavra. Zé Fernando estava em um dia fodido, num desses dias que deveriam ser arrancados do calendário e expulsos da memória, e Tom o acampanhava, calando chopes. E assim ficaram, música do silêncio, do meio-dia até o final da tarde.
             Não tinha mais ninguém por lá quando os dois foram-se embora, caminhando devagar.

                                              Eduardo Galeano in: Bocas do Tempo 

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

As Alianças

" (...) A essa desconhecida ele tinha pedido que fosse a sua intercessora na travessia da vida. O acaso de um encontro se havia convertido na aliança que, igual a uma comporta, disciplina as águas da paixão e do desejo. Mas, para cada um de nós, os outros são desconhecidos. Somos condenados a amar criaturas que ignoramos, e das quais nada sabemos - nem o que elas pensam, nem o que sonham ou desejam, nem mesmo a significação exata de seus gestos e palavras. Por mais que nos aproximemos delas, ou as respiremos em nosso convívio, entre paredes que não ouvem nem falam e são as expectadoras compassivas dos segredos humanos, essas criaturas são como gotas de água que, nos dias de chuva, resvalam na vidraça. Movem-se como figuras de sonho, fugidias e inalcançáveis, no outro lado da paisagem."


                                                                 Lêdo Ivo in: As Alianças

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Poesia

"Os nomes dos poetas populares deveriam estar na boca do povo.."




Poesia na voz de Maria Bethânia

"(...)
No contexto de uma sala de aula
Não estarem esses nomes me dá pena
A escola devia ensinar
Pro aluno não me achar um bobo
Sem saber que os nomes que eu louvo
São vates de muitas qualidades.
O aluno devia bater palma
Saber de cada um o nome todo
Se sentir satisfeito e orgulhoso
E falar deles para os de menor idade
OS NOMES DOS POETAS POPULARES."


                     Antônio Vieira - Poesia

domingo, 14 de agosto de 2011

Quintaneando..



O LIVRO DA VIDA

Comparar a vida com um livro é uma das imagens mais batidas. Que importa? Novidade não é documento. Mas que ansiosa leitura, que suspense. Porque pode terminar sem mais nem menos, às vezes em meio de um capítulo, de uma frase...e, assim, a gente tem que saborear linha por linha, minha filha, para fazê-lo render o mais possível: nada de leitura dinâmica.
                                                           Mário Quintana

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Carpinejar

Um dia é do galo, outro dia é do corvo.
Um dia é da seca, o outro é da enchente.
Um dia é do ódio, o outro é da reconciliação.


Um dia é da fartura, o outro é da escassez.
Esperei a chance de confessar
e passei do momento.


Meu filho, não sejas avaro com as palavras como eu.
Tenta usar as que não têm sentido.


Faze perguntas à toa:
"Por que as frutas e as flores não aparecem juntas
                                                        na macieira?
"Porque a noite fica violeta depois das cigarras?


                          Carpinejar in: Meu filho, Minha filha.

                            _____________________________


Hoje quem sopra velinhas é o meu amigo Fabiano. Que venham muitas realizações! Força e saúde, inclusive para  levar adiante seus ótimos projetos. bjs.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Fernando Pessoa

"(...) Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucendendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trêmulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso. (...)"

                                                            Fernando Pessoa

domingo, 7 de agosto de 2011

Es Sudamerica mi voz

Um brinde à unidade da América Latina e um passeio pela América do Sul!
Mais um brinde a Mercedes, cantante que carrega um povo em sua voz!




"La unidade de los nuetros pueblos no es simple quimera de los hombres, sino inexorable decreto del destino."
                                             Simon Bolivar

sábado, 6 de agosto de 2011

Mercedes Sosa, La Negra



"tantas vezes me mataram, tantas vezes eu morri, sem embargo, estou aqui, ressuscitando..."

É tão linda que vale uma versão em português. Na voz aveludada do Renato Teixeira:

Roteiro de Ondas Curtas

"Quando se ruminam palavras, se dorme o tempo. E se alimenta seu sonho. Assim. Se revolve o mais profundo.
       Voz não é assim. Voz massacra e passa. Encanta e voa. Mas palavra cava um fosso e vira pedra sob pedra, alvar lavra que se amontoa num caminhão de seda que corre nas veias da terra.
       Voz aterra. Apregoa. Ou entoa. É grito de alerta. É canto. Palavra é canoa. Permanece solerte no músculo gelatinoso do tempo, revigorando-se quando se pensa que fenece, no sobe-desce dessa água. Flutua e não desaparece. Canora, no seu remoer de minúsculos cupins que concernem ao cerne da madeira.
        Voz é prece. Ou maldição. Palavra é remendo que se arremeda a si mesmo, se descose e encamisa. Palavra é resposta, o milagre que se renova, a fêmea que se alimenta da própria fome.
       Voz é o gomo. Palavra o inteiro bambuzal, que se lambuza no vento da luz. (...)"


                                                        José Irmo Gonring

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

um bom poema leva anos

    um bom poema
leva anos
      cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
      seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
      sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
      três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
      uma eternidade, eu e você,
caminhando junto


                        Paulo Leminski

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Paulo Leminski

Isto de querer ser
exatamente
aquilo que a gente é
ainda vai nos levar
além.

                        Paulo Leminski