terça-feira, 28 de junho de 2011

Nélida Piñon

"Felicidade é aquela que te escraviza ao cotidiano, ao pão nosso de cada dia, e não altera a rota das tuas quimeras fracassadas.
Felicidade é quando alguém apara as tuas asas, justo aquelas que te levam a sonhar, para que tenhas como escusa do teu tropeço o nome do teu algoz.
Felicidade é olhar o espelho com a ilusão de que ninguém, em todo o planeta, reduziu o diâmetro do teu espaço na casa e na vida. Mas que, a despeito de algum vizinho cercear os teus direitos, há sempre aquele instante em que estás no jardim do parque Montsouris, no coraçao do meu bairro, a olhar os corpos entregues ao sol, como se todos, em um átimo, entretidos com as tentações da carne e do mal, houvessem se libertado do pecado original.
Felicidade é dar alimento à família e, conquanto ela seja um fardo, sufocar a ânsia que temos de nos matar ao primeiro bom-dia da manhã.
Felicidade é transmitir ao vizinho a crença moral de cuja eficácia duvidaste e defender o bem que a humanidade tenta projetar entre homens de boa vontade.
Felicidade é prorrogar a noção dos dias que se têm para viver e ignorar a sombra da morte que nos quer cobrir com seu manto fétido e surpreendente.
Felicidade é reivindicar o saber advindo da trajetória humana, e descobrir que somos carrasco, deus, herói e amante de um passado de que somos parte. E, mediante a participação nos pecados coletivos, celebrar a páscoa dos povos.
Felicidade é rebelar-se contra o amor dito perfeito, é filtrar as impurezas afetivas e, ainda assim, empenhar-se em viver."

                                    Nélida Piñon: Coração Andarilho

Um comentário:

Anônimo disse...

Parabens pelo blogue. O conteudo é muito atractivo.

Literatura e arte são duas temáticas das quais tenho imenso interesse.

Cumprimentos